dinossauro
Curiosamente reparo que o meu último post data de 25 de Abril, o dia da revolução.
A mim e a muitos como eu, que afortunadamente nascemos "em liberdade", como é comum afirmar-se, o significado da data confunde-se com as suas repercursões no nosso quotidiano.
Foram 40 anos de (tentativa de) tolhimento da capacidade criativa e do espírito científico de um país, com profundas cicatrizes sociais e culturais; os processos de renovação cultural do Estado Novo, deviam, por si só, fazer baixar os olhos a todos aqueles que agora se insurgem contra a globalização.
Digamos, portanto, que estamos com 40 anos de atraso. E 40 anos são uma vida... 32 anos, ainda assim, parece-me ser tempo suficiente para fazer a diferença -- que o digam todas essas vidas excepcionais que não foram desperdiçadas e que se mantiveram irrequietas e desafiadoras apesar do marasmo generalizado.
Hoje, no entanto, ao ler Dinossauro Excelentíssimo, não posso deixar de pensar, em como -- nas pequenas (ou será grandes?) coisas -- 32 anos não fizeram nenhuma diferença, e que os críticos mais pessimistas que advogam a incapacidade de Portugal para recuperar face à Europa, por vezes fazem soar umas campaínhas...
"O Reino naquela época tremia de frio e desconfiança. Tinha-se deslocado mais para a beira-mar, não se sabe bem porquê mas calcula-se: fome. A fome vinha do interior e varria tudo para o oceano.
Nesta leva desgarrada, escapavam os camponeses, que tinham a barriga curtida, eram cardos, e que se cravavam na terra à dentada, como uns danados. Espalmavam-se nas tocas e nas dobras das montanhas para deixar passar a ventania, pareciam calhaus, seres empedernidos; depois voltavam ao trabalho, à semente que se enterra e ao fruto que se arranca. Tinham-se habituado de tal maneira à má sina que fome para eles era o pão de cada dia.
Os restantes, os que não conseguiam enganar os vendavais, fugiam de roldão pelo país, atravessando aldeias e planícies, vinhas e repartições, hoje fazendo família neste ponto, amanhã mais naquele, até se verem diante do mar, acossados. Uma vez ali, ou entregavam o corpo aos caranguejos ou faziam como o mexilhão: pé na rocha e força contra a maré. Daí o nome de Reino do Mexilhão que lhe pôs a geografia em homenagem a esse marisco mais que todos humilde, só tripa e casca. (...)
Criatura (porque o é), criatura à margem e mirrada, coisa pequena; bicho que se alimenta de água e sal, do sumo da pedra ou de milagres -- o mexilhão, vida negra, tem a ciência certa dos anónimos: pensa e não fala, sabe por ele. Se virou costas à terra foi por culpa dos doutores ditos dê-erres e da conversa em bacharel com que o enrolavam; unicamente por cansaço, desinteresse. Por isso, na condição de habitante do litoral era com o oceano que desabafava. Levava os dias a medir o infinito e a resmoer o seu ditado preferido: Quando o mar bate na rocha... o resto já nós sabemos, segredavam.
Um estrangeiro, mesmo o mais despassarado dos estrangeiros, não podia deixar de concordar que havia muita verdade no provérbio. Logo que nos outros reinos se declaravam guerras ou preços lá vinha o vento a alastrar e quem pagava eram os mexilhões apesar de não terem feito nada por isso; se os serranos se deixavam arrastar das suas tocas, sabiam que era contra eles que vinham bater e viam-se obrigados a fazer parede, ai, vida, para não se deixarem levar pelas águas. Vida. Vida negra.
Ao cabo de largos anos de experiência estes camponeses pendurados nas falésias, mexilhões no legítimo sentido da palavra, tinham criado pé, raízes de limo, obstinados em olhar as nuvens, o quer que fosse. À falta de comida mastigavam os beiços e os pensamentos que lhes trazia a brisa marítima e esse morder em seco e as rugas de tanto fitarém o além faziam-nos velhos antes do tempo. Nasciam já velhos, parece impossível."
José Cardoso Pires , Dinossauro Excelentíssimo (Natal de 69 e Março de 71)
Sem comentários:
Enviar um comentário