eating our friends
De alguma forma "em contramão" relativamente ao post anterior, deixo aqui alguns excertos de "Eating our friends" uma intervenção apresentada por Roger Scruton, num debate com o filósofo e defensor dos animais Peter Singer.
Roger Scruton é um controverso filósofo, e (opino eu) defende posições algo conservadoras, relativamente à religião e aos direitos animais. Daí o antagonismo face a Peter Singer, autor de Animal Liberation, activista dos direitos dos animais e vegetariano convicto.
Pessoalmente, preocupa-me a falta de qualidade dos alimentos que consumimos, e como a própria cadeia de consumo orienta e limita as nossa escolhas no que aos alimentos concerne (multiplicada por um factor brutal, certamente, nos meios urbanos). Esta preocupação é maior ainda no que se refere a produtos de origem animal , pela inerente questão moral relativa à vida dos animais e ao nosso direito de a tirar. Ainda assim, as alternativas, nomeadamente a alternativa vegetariana, (a)parecem quase sempre carregadas de uma forte carga emocional que falha em encarar o problema de frente. Agradou-me, por isso, a forma lúcida e articulada com que Scruton fundamenta a sua argumentação:
A forma como tratamos os animais, tal como muitas outras coisas que eram antes prerrogativas da religião, transformou-se numa questão de moralidade comum, em que não faltam sermões dirigidos contra os caçadores, as pessoas que usam peles de animais e os carnívoros, proferidos por puritanos que não conseguem tolerar a visão destes pecaminosos prazeres.
[...]
Sinto que é premente colocar no centro do sujeito, especialmente desde que o sujeito é a nossa relação com o mundo natural, outro aspecto da natureza humana muitas vezes deixado de fora pelos tratamentos padrão da ética: refiro-me à piedade. Com isto quero dizer uma disposição para reconhecer o nosso estado de fraqueza e dependência e para enfrentar o mundo que nos rodeia com a devida reverência e humildade. É a atitude que muita gente -- incluindo ambientalistas, conservacionistas e activistas do bem-estar animal -- está a tentar recuperar num mundo onde os resultados da arrogância humana são tristemente visíveis.
[...]
Em todas as sociedades tradicionais, o acto de comer tem sido considerado uma prática social, muitas vezes religiosa, acompanhada por rituais e desfrutada como uma primeira celebração de pertença. Os seres racionais alimentam-se de conversa, paladar, boas maneiras e hospitalidade, e divorciar os alimentos destas práticas é retirar-lhes o seu verdadeiro significado.
Os seres racionais alegram-se menos em saciar-se do que à vista de comida, mesa e convidados vestidos para uma oferenda ritual. As suas refeições são também sacrifícios e os antropólogos defendem por vezes que aorigem das nossas práticas carnívoras está nas oferendas queimadas de antigos rituais. Em todo o caso, a oferta de comida é a essência da hospitalidade.
Na cultura da «fast food», por outro lado, a comida não é oferecida mas tomada. O abarrotamento solitário com hamburgers, pizzas e «jantares TV»; o desaparecimento das refeições em família e cozinhadas em casa; a perda das boas maneiras à mesa -- tudo isto tende a obscurecer a distinção entre comer e alimentar-se. Para muitas pessoas, o vegetarianismo é uma via indirecta de restaurar essa diferença. Os vegetais são dádivas da terra: ao comê-los restabelecemos contacto com as nossas raízes. Oferecem-nos uma maneira de mais uma vez incorporarmos os alimentos na vida moral, rodeando-os de escrúpulos morais e revitalizando o precioso sentido de vergonha. O comer carne não pode ser justificado sem confrontar os sentimentos profundos que inspiram os nossos hábitos dietéticos. O ónus é dos carnívoros, a quem cabe demonstrar que existe uma maneira de incorporar a carne na vida que não envergonhe a raça humana, tal como é envergonhada pela gula do devorador de hamburguers que faz lembrar o solitário «homem das cavernas».
[...]
Os animais criados ou mantidos para nossa utilização não são membros honorários da nossa comunidade moral - como acontece com os animais de estimação. Não obstante, a utilização que fazemos deles impõe um dever recíproco de cuidar deles, que vai desde o agrucultor ao magarefe e do magarefe ao consumidor, todos os que beneficiam destes animais e que devem, portanto, assegurar a sua parte no dever de cuidar os animais. Criticar a criação industrial de porcos como violadora desse dever é seguramente correcto e adequado. Mas consideremos o tradicional criador de carne bovina, que engorda os seus bezerros durante 30 meses, mantendo-os em pastagens ao ar livre no Verão e em estábulos espaçosos e aquecidos no Inverno, alimentando-os e erva, forragens, sementes de leguminosas e milho, tratando das suas enfermidades e enviando-os para abate quando chega a altura própria, no matadouro mais próximo, onde são instantaneamente abatidos por um matador humano. Um agricultor como este trata o seu gado com todos os cuidados que lhe são devidos, e animais como estes são tão felizes quanto a sua natureza lhes permite. Quem gostar de animais deve ver este tipo de criação de gado como um bem moral complexo, que por um lado eve ser defendido contra aqueles que desejariam proibir sumariamente o consumo de carne e, por outro contra os carnívoros que preferem o sofrimento oculto da criação industrial e do matadouro fábrica.
[...]
Não devemos abandonar os nossos hábitos de consumo de carne, mas sim re-moralizá-los ao reincorporá-los em relações humanas afectuosas e utilizando-os como instrumento de hospitalidade, convívio e paz. Foi esse o remédio praticado pelos nosso pais, com o seu tradicional almoço ao meio-dia de domingo(...). Os que foram criados em «fast-food» não estão habituados a fazer sacrifícios: horas de refeições, boas maneiras, conversa à mesa e a própria arte culinária - tudo desapareceu da sua visão do mundo. Mas todas essas coisas fazem parte de um bem humano complexo e eu não posso deixar de pensar que, quando acrescentados aos benefícios ecológicos da criação de animais em pequena escala, eles garantem-nos um lugar de honra no esquema das coisas e neutralizam mais eficazmente do que a alternativa vegetariana, o nosso fardo de culpa herdado.
Os parágrafos anteriores provêm da transcrição de parte do artigo "O credo dos carnívoros", publicado na revista actual, do Expresso, de 1 Julho.
Aqui fica também a publicação original, na íntegra e na língua original: eating our friends
Archive of Roger Scruton's publications
Roger Scruton - Animal Rights
Peter Singer
http://www.utilitarian.net/singer/
5 comentários:
O vegetarianismo soa-me sempre a moralidade fácil, mais uma forma que o homem tem de tentar obter superioridade intelectual ou social sobre o seu semelhante, que é afinal um dos maiores e mais antigos vícios da nossa espécie. De qualquer maneira, não me sinto obrigado a arranjar desculpas pra comer, e se tiver fome suficiente, como qualquer um desses dois macacos. Cá pra mim o vegetariano deve ser um bocado rijo... e aquela gordurazinha que preenche o espaço entre as vértebras é do melhor!
:)
(Sempre que alguém assume uma postura diferente da maioria é uma procura de superioridade... ou uma opção pessoal?! E ainda que tivesses razão não será uma forma bastante inócua de obter superioridade? Há outras que são um bocado mais repressivas - se fossemos pelo caminho da superioridade social, então, meu amigo, a lista nunca mais acabava, e com essas levas todos os dias... Esta, ninguém ta obriga a aturar passivamente - a não ser que seja um vegetariano de caçadeira em punho! :P)
O que achei revolucionário na intervenção do Scruton foi precisamente apresentar uma solução que faz sentido independentemente da postura ideológica de cada um (ainda que ele vá por aí para se fundamentar).
Também não preciso de desculpas para comer, mas gostava de ter uma desculpa para comer bem... carne, peixe ou vegetais, o que for.
A consequência da criação massificada de animais para consumo é precisamente a falta de qualidade (para além do desprezo pela condição do animal - que é o tal argumento que não te preocupa) e é por aí que o que este gajo diz faz algum sentido para mim...
Quanto a papar os macacos... Bom apetite, acho que prefiro esperar pela sobremesa. O sabor da carne, sem capar o bicho, não é a mesma coisa...
O vegetarianismo n é uma opção 'diferente da maioria' no meu entender, no sentido em que é já uma tendência global entre certos perfis sociopsicologicos (n me parece q akele ppl na Etiópia seja vegetariano - mmo q mtos n comam outra coisa desde q nasceram - como akele ppl q anda a meio de um curso universitário e de repente sente-se iluminado pq viu um gajo a ler um livro uma vez qd foi à biblioteca vomitar) Por outro lado, n kero q penses q eu estou a negativizar exagerademente a tal 'busca de superioridade intelectual' - é só uma observação de uma realidade, que tanto encontra expressão entre vegetarianos inofensivos como entre neonazis homicidas. É uma idiossincrasia humana, q faz bem observar - tb a observo em mim próprio!
...agora curioso curioso é reagires a meu comentário com a acusação de que n me preocupa a condição animal, qd falo de sobrevivência. Porque é q achas q fizeste isso? (tb n digo q os matadouros industriais me tirem o sono - deixo a ressalva q talvez devesse, mas pra me desculpar remeto-te ao video dos macacos :P)
"devessem"
(devia dar pra editar esta porra)
Engraçado como já uma vez (apesar de não me recordar ao certo a que propósito) te respondi:
sobrevivência a TODO o custo?!
(Ainda) não estamos a meio de um holocausto nuclear, nem (pelo menos por cá, pelo menos por agora) preciso de andar armado na rua.
O vídeo dos macacos é um bom ponto de "ligação à terra", mas no fim de rir um bocado, continuo a considerar-me algo mais que um macaco. Curiosamente o gajo que fez o vídeo nunca se refere à noção de bem de mal (a moral), porque sabia que por aí não ia conseguir rir muito... Por muito que os conceitos variem (daqui para o médio-oriente, por exemplo) o que é facto é que quando ESCOLHES não perder o sono por causa de determinado assunto conscientemente estás a tomar uma atitude, tal como se escolhesses fazê-lo.
Não defendo nenhuma atitude radical - até porque não concordo com os argumentos da maioria dos activistas dos direitos dos animais; e como já disse também gosto do meu bitoque com o ovo a cavalo (e podia acrescentar o lado económico da questão, que dava para mais uns 50 posts...)- mas aqui está um bom exemplo de algo que me faz parar para pensar, especialmente quando vou ao supermercado. Se calhar porque ainda julgo que se pensar agora não vou ter de, mais tarde, andar a caçar vegetarianos na rua para os comer.
Enviar um comentário