19 setembro 2006

a terceira versão

Novembro entrado, veio a boa da chuva, a esplêndida inimiga dos que andam a pé pelas ruas da cidade. No entanto, a espaços, o sol ainda assoma por entre as nuvens. E, no decorrer dos dias, sucedem-se aos restos do Verão que passou os começos do Inverno que vai chegar. A mutação é rápida. Some-se a claridade, e a chuva, cai, inesperada.

Iguais todos os anos, repetem-se os acontecimentos que a chuva ocasiona. Há também as histórias que a chuva recorda. As velhas histórias que se contam, também sempre iguais todos os anos.

Ora, ontem, quando chovia a cântaros, três homens, acolhidos a uma porta, falavam, e um deles, sabe-se lá porquê, contou a conhecida história de certo devedor que, ao avistar o credor a correr debaixo de violenta chuvada para a porta onde se abrigara, receoso de passar por uma vergonha, disse aos outros que ali estavam: «Vou aproveitar esta aberta!», e saiu sob a cerração da água.

Os outros dois homens não acharam graça. Lá teriam as suas razões. E um deles disse: «A versão que eu conheço é muito diferente. Não era o devedor quem estava abrigado - era o credor. O credor, já se deixa ver, tinha abrigos para tudo. e dos melhores, quer para o frio ou para o calor, quer para o sol ou para a chuva. Estava, pois, o credor muito bem abrigado quando viu o pobre do devedor a correr da tal chuvada. E pensou: "Se ele entrar aqui, como ainda não conseguiu pagar-me a dívida, vou sentir-me envergonhado por, com a minha presença, obrigá-lo a recordar-se de tal facto. Por isso saiu para a chuva, depois de dizer aos outros: 'Vou aproveitar-me desta aberta!...' "»

Então, o que até ali ainda não tinha falado, disse: «Há uma terceira versão, que talvez não conheçam, mas que eu acho a mais bela e a mais simples. E é assim: todos correram para o mesmo abrigo e nenhum de lá saiu, embora depois entrassem outros e outros, corridos pela chuva. Não havia credores nem devedores. Desconheciam isso. ninguém tinha de se envergonhar de coisa alguma. Apenas se defendiam das inclemências do tempo, mais nada.»

Calaram-se os três sujeitos. E, calados, meditavam nas tão diferentes consequências ocasionadas pela chuva quando cai em cima das pessoas que andam por portas. Que era, como se estava a ver, o caso deles.


A terceira versão, Manuel da Fonseca,
in "O vagabundo na cidade", 1967

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