19 fevereiro 2009

Acho que vai ter de ficar para outro dia

Há uns anos a esta parte que mantenho, de forma tão sistemática quanto me é profissionalmente possível, uma rotina solitária - misantrópica e doentia diriam alguns - que me ocupa a quase totalidade da hora de almoço. À custa desse hábito consegui anular quase por completo os convites dos colegas de trabalho para os acompanhar durante a refeição, cansados das recusas sucessivas e mais ou menos inconsistentes. Resolvo apressadamente, e com frequência de forma negligente, a questão alimentar propriamente dita e sento-me, dentro do carro, à coberta de uns plátanos (seria mais poético se fossem outras árvores, menos comuns e urbanas, bem sei, mas é a triste realidade). Tiro o livro da mochila e embarco na luta de tentar abstrair-me o suficiente para usufruir do momento, enquanto mecanicamente vou verificando o relógio para não me atrasar.

Foi mais ou menos neste contexto que me encontrei hoje, mas desta feita com o computador portátil sobre os joelhos, pronto para começar a escrever este artigo. Acendi um cigarro e pensava atirar-me de forma crítica à deprimente falta de público que assola parte dos espectáculos na cidade ou então elogiar o trabalho das associações e programadores que, apesar da dificuldade em obter apoios, insistem em promover iniciativas de qualidade.

Nunca o cheguei a fazer. A poucos metros de onde me encontrava, uma família de ciganos rondava uma carrinha branca, suja e picada de ferrugem. Enquanto o chefe de família habilmente fazia crescer do chão cestas de verga em série, a um ritmo acelerado, a cigana lavava, numa água absolutamente opaca, pedaços de tecido vagamente semelhantes a peças vestuário. Ali por perto, dois miúdos (o mais pequeno ainda com um andar cambaleante de quem apenas há uns meses começou a andar) interrompiam ciclicamente as brincadeiras com o triciclo de duas rodas para abordar os transeuntes, braço estendido e voz chorosa.

Perdi-me no raciocínio quando ia dissertar sobre o acesso universal e democratizado à cultura e na necessidade de reeducar os públicos; sobre a profusão de informação disponível e de como é virtualmente impossível não usufruir, ainda que parcialmente, da enorme oferta cultural da cidade... Acho que vai ter de ficar para outro dia.


como publicado na rubrica Advogado do diabo,
Jornal de Leiria, ed.1284 (19.II.2009)

Sem comentários: