onde vivi e para que vivi
«Rumei para os bosques porque queria viver deliberadamente, fazer face apenas aos factos essenciais da vida e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, sem chegar a descobrir, às portas da morte, que não tinha vivido. Não queria viver o que não era vida. Viver é demasiado importante. Nem queria praticar a resignação, a menos que tal fosse necessário. Tencionava viver profundamente e absorver a vida até ao âmago, viver de forma tão vigorosa e espartana como arrancar tudo o que não fosse vida pela raiz, desbastando um amplo espaço, deixando-o raso, encurralar a vida e reduzi-la aos seus termos mais elementares e, se fosse medíocre, retirar-lhe toda a genuína mediocridade e divulgar tal mediocridade ao mundo. A verdade é que a maioria dos homens, parece-me, sente uma estranha incerteza quanto a tudo isto (será obra do Demo ou de Deus?), concluindo de forma célere que o principal objectivo do homem aqui é "glorificar Deus e desfrutá-lo eternamente".
Contudo, vivemos na mediocridade, quais formigas, mesmo que a fábula nos conte que há muito tempo nos transformámos em homens. Lutamos com gruas, quais pigmeus. É erro sobre erro e remendo sobre remendo, e a nossa melhor virtude decorre de um infortúnio supérfluo e evitável. A nossa vida é desperdiçada em pormenores. Um homem honesto dificilmente precisa de contar para lá dos seus dez dedos, podendo, em casos extremos, acrescentar os dez dedos dos pés e que o resto se acumule. Simplicidade, simplicidade, simplicidade! Digo-vos "que as vossas labutas sejam duas ou três, não uma centena ou um milhar, que ao invés de contardes um milhão contai meia dúzia e terão uma ideia geral das contas". No meio deste mar picado da vida civilizada, tais são as nuvens e tempestades e as areias movediças e mil e um itens a ter em conta, que um homem tem de viver, para não se mergulhar e ir ao fundo antes sequer de chegar ao seu porto, por estimativa, tendo ainda de ser um grande calculista com êxito. Simplificar, simplificar.»
excerto de "onde vivi e para que vivi", de Henry David Thoreau
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